Por: Victor Nóbrega Luccas, Sócio

Nos últimos dias, o chamado “caso Monark” ganhou a mídia. Segundo consta dos relatos, pois o vídeo já foi retirado da internet e não tive condições de examiná-lo, o YouTuber brasileiro e o deputado federal Kim Kataguiri (Podemos-SP) defenderam que a legislação brasileira deveria ser alterada, de modo a descriminalizar o nazismo e permitir até mesmo a criação de um partido nazista. Segundo declarações posteriores do deputado, tratava-se não de uma defesa do nazismo, mas, sim, da liberdade de expressão: “A melhor maneira de você reprimir uma ideia antidemocrática, tosca, bizarra, discriminatória é você dando luz àquela ideia, pra que aquela ideia seja rechaçada socialmente[1].

As declarações foram prontamente rebatidas pela deputada Tabata Amaral (PSB-SP), presente ao debate, e ensejaram manifestações de repúdio de entidades judaicas, partidos políticos, da embaixada alemã, de ministros do STF e de inúmeras outras personalidades, jornalistas e acadêmicos. A Procuradoria-Geral da República e o Ministério Público de São Paulo abriram inquérito para apurar crime de apologia ao nazismo.

Diante do debate instaurado e aproveitando a experiência que tive realizando pesquisa sobre o discurso de ódio na Fundação Getulio Vargas, com o apoio da Confederação Israelita do Brasil, gostaria de contribuir oferecendo uma sintética resposta a duas questões que o caso levanta: se a liberdade de expressão deveria ser considerada absoluta e justificar a permissão do discurso nazista, na linha do que aparentam defender Monark e o deputado Kim Kataguiri; e se Monark e o deputado Kim Kataguiri podem ser condenados pelo crime de racismo ou apologia ao crime.

A resposta à primeira questão é negativa, como tenho visto muitos acertadamente apontarem em veículos diversos, mas gostaria de explorar melhor os seus fundamentos.

O discurso nazista é a forma mais conhecida — quiçá a mais perversa — de discurso de ódio, isto é, um conjunto de “manifestações que avaliam negativamente um grupo vulnerável, ou um indivíduo enquanto membro de um grupo vulnerável, a fim de estabelecer que ele é menos digno de direitos, oportunidades ou recursos do que outros grupos ou indivíduos membros de outros grupos, e, consequentemente, legitimar a prática de discriminação e violência“. A razão para proibir tal forma de discurso é a proteção dos grupos vulneráveis, aqueles que possuem propensão significativa a sofrer violência ou discriminação, assegurando que sejam respeitados seus direitos à igualdade e à dignidade.

O discurso de ódio não é um “mero” discurso. Ele produz consequências reais e atrozes. Tem o condão de instigar a discriminação e a violência e, independentemente disso, gera sofrimento psicológico nos membros do grupo vulnerável alvo do discurso, sentimentos como medo e angústia. Quem pertence a esses grupos, como judeus, negros e homossexuais, conhece bem esses sentimentos.

Em 2019, mais de 300 células neonazistas atuavam no Brasil

Alguns defensores da liberdade de expressão absoluta alegam que o discurso de ódio seria “inofensivo” ou só seria perigoso em situações extremas, o que não ocorreria no Brasil. Argumentam, ainda, como fez o deputado, que a melhor maneira de combater o discurso seria deixá-lo livre para ser rechaçado. Há crescente literatura empírica, aqui e no mundo, que demonstra o contrário. Gostaria de destacar a pesquisa da antropóloga Adriana Dias, a quem já tive a oportunidade de entrevistar, que há anos acompanha células neonazistas no Brasil e relata sua ascensão, com 334 delas em atividade em 2019. Não é por falta de repúdio social, como o próprio “caso Monark” evidencia. Aprendi com ela que esses grupos frequentemente nascem de maneira aparentemente inofensiva, desvinculados do nazismo, mas a circulação de ideias discriminatórias os inflama, conduzindo-os à discriminação e à violência. A verificação empírica corrobora o argumento do professor Jeremy Waldron no importante livro “The Harm in Hate Speech” (“Os danos do discurso de ódio”, em tradução livre) de que o discurso de ódio, como a poluição, gera cada vez mais danos e riscos pelo seu acúmulo, pelo efeito de rede que possui.

Também já ouvi alguns defenderem que os sentimentos dos alvos do discurso de ódio não poderiam justificar uma proibição, seja porque são apenas “incômodos” ou porque sentimentos são figuras muito subjetivas. A quem não pertence aos grupos vulneráveis e não consegue se identificar, lhes pergunto: como se sentiriam se o Estado brasileiro chancelasse um partido que declara a sua inferioridade e tem por objetivo retirar seus direitos, seus bens e, em última instância, sua vida? Nesse exercício hipotético, peço que considerem a ascensão de células violentas contrárias ao seu grupo social, que sofrem discriminação histórica, bem como constantes ataques ao seu modo de vida por segmentos expressivos da população. Não é difícil verificar, salvo alguma dificuldade grave de se colocar no lugar do próximo, que estamos lidando com algo muito além de mero “incômodo” e que não se pode permitir que qualquer ser humano esteja nessa situação.

Os defensores da liberdade de expressão absoluta invocam ainda o valor da liberdade da expressão ou os supostos benefícios que ela gera, em favor da permissão do discurso nazista. Tratam de participação no processo democrático, mercado de ideias e conceitos correlatos. Não conheci alguém capaz de explicar como pode haver valor democrático em um discurso que é, por definição, contra a democracia, tendo por objetivo excluir pessoas do processo político. O paradoxo da tolerância de Popper, que felizmente vi ser resgatado nesses dias, é um excelente adendo: para garantir a democracia, devemos tolerar tudo, exceto os intolerantes.

O último dos argumentos frequentemente invocados é que não haveria critérios claros para traçar a linha do que é permitido ou não pela liberdade de expressão e, se permitirmos a restrição, não saberemos onde vamos parar. Mais uma vez, há um equívoco. Mesmo que se aceite que há casos em que a legalidade da manifestação seja discutível, há muitos casos claros. E mais, há muitas pessoas e instituições trabalhando com afinco para aperfeiçoar tais critérios com resultados promissores, como se vê, por exemplo, no livro “Discurso de Ódio: Desafios Jurídicos”, um dos resultados da pesquisa que coordenei. E ainda que em certos casos se faça necessário escolher entre a liberdade de expressão e o binômio igualdade-dignidade, por que deveríamos privilegiar a liberdade de expressão? O que se perde, ao permitir discursos de ódio, é muito claro. O que se ganha está para ser demonstrado.

A possibilidade de traçar critérios para a liberdade de expressão nos leva a breves linhas sobre a segunda questão levantada no início deste artigo. Se é verdade que os investigados apenas defenderam que, em decorrência da liberdade de expressão, deveria poder existir um partido nazista, ou que essa permissão seria a melhor forma de combater as ideias nazistas, não há racismo, nem apologia ao crime. O que há é simplesmente uma leitura — equivocada — do direito à liberdade de expressão. Visão defendida também por acadêmicos em todo o mundo e Brasil afora.

Como Voltaire e a sabedoria popular bem sabem, é perfeitamente possível discordar de alguém, mas defender que tal pessoa tenha o direito de defender suas ideias. O limite está no que está sendo defendido — a liberdade de expressão, e não o discurso nazista. Reconhecer o direito de discutir o sentido da liberdade da expressão não equivale a permitir que o Estado chancele a legalidade de discursos de ódio.

Portanto, e ironicamente, Monark e o deputado Kim Kataguiri têm o direito de defender a ideia de que a liberdade de expressão pode ser absoluta, ainda que esta seja “antidemocrática, tosca, bizarra, discriminatória”.